Chacina no Rio de Janeiro: veja entrevista com docentes a respeito da ação

A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ) realizou ontem, 6 de maio, a chamada “Operação Policial Exceptis”, que se transformou na maior chacina praticada pelo Estado no Rio de Janeiro até então.  

A ação foi realizada sob a justificativa de capturar criminosos, sob acusações de aliciamento de menores, roubos e sequestros de trens e metrôs na região da favela do Jacarezinho, região norte da capital fluminense.

Violando uma série de direitos constitucionais, determinações legais e judiciais, como a proibição da realização de operações policiais durante a pandemia, 25 pessoas foram mortas com invasões de moradias, tiros de fuzis, caveirões e helicópteros. 

Segundo nota do ANDES-SN, a chachina foi caracterizada como “Uma ação organizada para matar sumariamente moradoras e moradores da favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro e que escancara as relações nefastas entre a milícia, governo e polícia por meio de um aparato estatal sofisticado que se soma a ideologia burguesa, que criminaliza corpos negros, pauperizados e legitima esse massacre.”

Para falar sobre o assunto, a APES convidou a professora Carolina Bezerra, Professora do Departamento de Ciências Humanas do Colégio de Aplicação João XXIII da Universidade Federal de Juiz de Fora e integrante do Coletivo Marielle Franco,  e o professor Luiz Eduardo de Oliveira, Doutor em História Social e docente do Núcleo de História do Campus Juiz de Fora do IF Sudeste MG.

Confira

Carolina Bezerra

1) De que forma você enxerga a chacina ordenada pelo governo do Rio de Janeiro contra a comunidade do Jacarezinho e como ela se relaciona com a atual conjuntura?

Inicialmente, temos que parar de tratar esse governo como louco, como anticiência apenas. Eu acho que as questões são mais complexas e profundas, porque é um projeto civilizatório que está sendo implementado e o governo  sabe o que está fazendo. 

Se logo depois de uma chacina como esta, o presidente faz um pronunciamento sobre o cabelo black power de um apoiador, falando de baratas e piolhos; quando o vice presidente diz “era tudo bandido”, na verdade se instaura uma lógica de que “bandido bom é bandido morto”. Tudo isso se relaciona a um imaginário que está se construindo no país, de olhar para essas ações não como Direitos Humanos que estão sendo feridos, legitimando uma política genocida, uma necropolítica.

Então, quando você associa a ausência do Estado em setores básicos e, em um momento de  pandemia, mesmo contra as recomendações de todo um sistema jurídico, dos organismos internacionais, promove uma chacina, no intuito de defender crianças e adolescentes, no qual o Estado não cumpre a sua função, toda essa política já é anunciada. Não temos auxílio emergencial, nem uma política efetiva na área da saúde e vamos, mais uma vez, penalizando e culpabilizando a miséria e a pobreza que é gerada pela própria ausência desse Estado. E quando ele chega é para exterminar esse grupo, como uma forma de conter, inclusive, qualquer forma de reação e resistência que possam surgir. 

Quando falamos dessa ação, que foi a mais letal que a polícia do Rio de Janeiro já cometeu, e se trouxermos os dados de que, desde 1998, a Polícia do Rio mata em média uma pessoa a cada 10h, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), podemos dizer que 20957 pessoas morreram em confronto com a Polícia no estado do Rio de Janeiro. Se somarmos esses dados ao genocídio da juventude negra, ao adoecimento das mulheres negras, ao índice de desemprego das mulheres negras durante a pandemia, que tem aumentado, isso se torna evidente que é uma política de extermínio desse grupo. Aí não tem como não lembrar do holocausto. Se lembrarmos que a política utilizada pelo Goebbels, pelo Regime Nazista era justamente associar judeus iguais a vermes e ratos. Então, quando você desumaniza determinado grupo por meio de uma brincadeira, de uma piada, falando que “são todos bandidos”, sendo que os peritos, advogados, os ativistas, quando foram nos locais, viram crianças que levaram tiros sentadas em cadeiras.
 Mas, quando você aciona esse imaginário, você acaba, de uma certa forma, tendo um “apoio”. A população acaba não lidando com esse extermínio como algo ruim,  e vê como algo natural e necessário para o bom funcionamento da sociedade. 

2) A ação comandada pelo governador Cláudio Castro (PSC-RJ) desrespeita decisão do STF, que proibiu ações nas favelas durante a pandemia. O próprio governador foi recebido pelo presidente Jair Bolsonaro um dia antes da chacina. Quais as implicações desta ação para a democracia brasileira?

Eu acho que esse fato demonstra um alinhamento dessa necropolítica. Mas, ao mesmo tempo, há todo um esquema de proteção, que se relaciona com a corrupção, com as milícias. Então, não tem como não relacionarmos todo esse contexto à própria execução da vereadora Marielle Franco. Se lembrarmos que sua atuação política estava relacionada exatamente a essa questão. A dissertação de mestrado que ela  fez na Universidade Federal Fluminense vai justamente trazer à tona essa denúncia de como a polícia no Rio de Janeiro atua muito mais em defesa do patrimônio e em defesa dos interesses de determinados grupos. Que o processo de militarização da polícia do estado do Rio de Janeiro acaba sendo um dos aspectos fundamentais para a consolidação de um estado penal, exatamente contra os grupos mais pobres e excluídos da sociedade brasileira, como uma forma de conter justamente os efeitos que a ausência total de políticas sociais, de políticas públicas efetivas, em áreas estratégicas da sociedade. 

Eu penso que nós precisamos entender os Direitos Humanos como universais e naturais. Eles estão relacionados à dignidade da pessoa humana, independentemente para quem eles são dirigidos. São inalienáveis,  são universais, têm que ser exigidos, protegidos e promovidos. 

Eu também acho que é importante colocar, como diz a professora Diva Benevides, da faculdade de educação da USP, que infelizmente nos últimos anos, pós ditadura, no Brasil, a defesa dos Direitos Humanos acabou sendo associada apenas à defesa de criminosos.

Quando temos o questionamento desses direitos humanos, não é em relação ao seu conceito mais universal, mas porque ele não garante a defesa da população pobre, das classes mais populares e aí, com certeza, é onde se concentra a maioria da população negra. Então penso que esses fatores são muito críticos e muito importantes de serem analisados. A defesa dos direitos humanos precisa ser para todos. Nós não podemos ter um Estado que utiliza o aparato da violência para culpabilizar e reprimir, para violentar aqueles que já são os mais violentados pela pandemia e por essa ausência de políticas públicas efetivas.

3) Quais as opções e perspectivas de luta contra o genocídio da população negra no Brasil?

Quando a gente pensa sobre as perspectivas de luta contra o genocídio da população negra no Brasil, eu vejo algumas questões: a primeira delas é que precisamos pensar em ações a curto, médio e longo prazo; a segunda é que precisamos pensar em ações inter-setoriais, interdisciplinares, inter-áreas, ou seja, você tem que pensar a elaboração de políticas públicas, que vão articular várias pastas e secretarias, várias frentes. Ao mesmo tempo, eu fico pensando em estratégias de pressão e de cobrança do governo brasileiro, efetivas e como exemplo muito salutar penso no quanto foi importante para a aprovação da Lei Maria da Penha, por exemplo, a articulação de organismos internacionais, de organizações internacionais. Então acionar essas redes é importante, em determinados aspectos, mas eu penso que será fundamental também, a médio e a longo prazo, ações que busquem combater esses ideais que, de uma certa forma, converge ataques aos Direitos Humanos em várias frentes, na questão das classes sociais, na questão étnico racial, na questão de gênero, na questão da LGBTTIfobia. Então pensar em ações anti racistas, anti lgbttifóbicas, anti misóginas, contra todo o preconceito que é veiculado contra os movimentos indígenas, quilombolas, ao MST. Eu penso que se faz urgente campanhas e movimentos das entidades civis e da sociedade, de maneira geral, pela via comunicacional e da mídia, um investimento muito intenso na área da educação, da educação básica à pós-graduação, com formação sobre ética, direitos humanos, educação para as relações étnico-raciais, educação para as relações de gênero e sexualidade, em todos os cursos da Universidade. Nós precisamos formar profissionais, que quando forem ocupar espaços de decisão e poder na sociedade brasileira, tenham uma formação para entender o racismo, o preconceito e essas desigualdades estruturais, que foram construídas a partir da própria formação histórica e estrutural da sociedade brasileira. 

Do ponto de vista político, nós só vamos conseguir avançar quando houver uma convergência das pautas da esquerda brasileira. Nós precisamos construir uma frente política ampla, para combater a barbárie, para combater a necropolítica e esse genocídio que está sendo implementado. Para isso, nós precisamos de formação, não podemos ser apenas as mesmas pessoas que sempre estão pesquisando e falando disso. Nós precisamos criar mecanismos para garantir a permanência desses jovens negros, dessas crianças negras na escola, e garantir também, em termos de Segurança Pública, que elas possam chegar à adolescência, à vida adulta e à velhice. 

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Prof. Luís Eduardo de Oliveira

1) De que forma você enxerga a chacina ordenada pelo governo do Rio de Janeiro contra a comunidade do Jacarezinho e como ela se relaciona com a atual conjuntura? 

Trata-se do mais letal evento de violação dos direitos humanos fundamentais perpetrado por agentes armados do Estado no Rio de Janeiro. Mas, absurdamente, não é um episódio isolado e que revela unicamente o modus operandi extremamente violento e o inaceitável despreparo técnico das forças policiais em tal estado. Nesse sentido, cabe lembrar que desde junho de 2020, quando o Supremo Tribunal Federal impôs restrições à realização desse tipo de ação policial durante a pandemia, cerca de 500 operações semelhantes foram empreendidas pelas polícias civil e militar fluminenses, resultando em mais de 800 óbitos. Uma barbárie crescente, portanto, que aparentemente está longe de ser contida.

2) – A ação comandada pelo governador Cláudio Castro (PSC-RJ) desrespeita decisão do STF, que proibiu ações nas favelas durante a pandemia. O próprio governador foi recebido pelo presidente Jair Bolsonaro um dia antes da chacina. Quais as implicações desta ação para a democracia brasileira? 

Como enfatizou Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, esse novo episódio hediondo se insere dramaticamente na profunda crise institucional em curso no estado do Rio de Janeiro, que teve nos últimos quatro anos seis governadores presos e um afastado após recente processo de impeachment – Wilson Witzel, ex-juiz que foi eleito em 2018 defendendo uma política de segurança pública pautada justamente em ações violentas como essa de tristes consequências perpetrada ontem no Jacarezinho. Em tal contexto, dentre inúmeros outros problemas, há um descontrole crescente e extremamente perigoso das forças policiais fluminenses, que figuram historicamente como as mais violentas do Brasil e que têm inúmeros de seus integrantes e ex-integrantes investigados por manterem relações com o crime organizado, sobretudo com as milícias que se alastram por todo o estado.

3) Quais as opções e perspectivas de luta contra o genocídio da população negra no Brasil?

De acordo com advogado Joel Luiz Costa, coordenador executivo do Instituto de Defesa da População Negra, a chacina do Jacarezinho torna mais evidente que não há Estado Democrático de Direito nas favelas do Rio de Janeiro, a exemplo do que se verifica também nas regiões periféricas das principais metrópoles brasileiras. Muito além de conter e disciplinar as forças policiais, revertendo o processo de “milicianização” em curso não apenas no Rio de Janeiro como em diversos outros estados, é necessário então ampliar as reivindicações populares pela reconstrução e efetivação de políticas sociais – saúde, educação, habitação, saneamento básico, transportes, cultura –  capazes de gerar melhorias sensíveis e para todos nos índices de segurança pública, superando definitivamente o modelo violento, repressivo e violador dos direitos humanos imposto a nossa sociedade sobretudo a partir a Ditadura Militar (1964-1985).