Entrevista com Vera Lúcia: luta e mobilização em tempos de pandemia

O Seminário da Classe Trabalhadora, realizado pelo 8M -JF segue realizando suas atividades semanalmente, contando com a participação ativa da APES, na realização de discussões e debates que visam aprofundar a análise dos diversos sindicatos, partidos, coletivos e militantes independentes que compõem o fórum acerca da realidade nacional e da conjuntura local em Juiz de Fora.

Nesse sentido, objetivando complementar as análises realizadas pelos debatedores na mesa de abertura do seminário, que teve como tema “Luta e mobilização em tempos de pandemia”, trazemos uma nova entrevista, dessa vez com a integrante da direção nacional do PSTU, Vera Lúcia. Participaram do debate inaugural Giovana Castro, Mauro Iasi, Valério Arcary e Vera Lúcia. A mesa de abertura, assim como todas as outras atividades do seminário, encontram-se disponíveis no canal do youtube do 8m. Confira a entrevista:

1) A crise do capital e a pandemia resultaram em uma queda histórica do PIB mundial, no aumento do desemprego a níveis inéditos, na liquidação de setores inteiros da economia, na  extinção de postos de trabalho e na ampliação ainda maior da concentração de renda. Ao mesmo tempo, a pandemia tem sido utilizada também para dificultar ou até mesmo inviabilizar a mobilização popular, para promover o fechamento dos regimes e para se ampliar os mecanismos de controle social. Nesse contexto, a pandemia não estaria contribuindo para uma derrota histórica da classe?

A pandemia, sem dúvidas, agrava os demais obstáculos que já existem na realidade da luta de classes, mas não é o único. É inquestionável que seja um dos grandes entraves, porque exige isolamento social contra a disseminação do vírus – embora a política de funcionamento normal da economia, defendida desde o início pelo presidente Bolsonaro, esteja sendo aplicada, inclusive por todos os governos e prefeitos, que no início da pandemia se confrontaram com governo federal e promoveram o isolamento parcial, com fechamento dos setores de serviços e do comércio, enquanto mantiveram funcionando as indústrias.  A abertura da economia na pandemia está sendo praticada pelos governantes de todos os partidos e matizes políticas, que abriram as porteiras do matadouro para o abate dos trabalhadores e dos mais pobres, ou seja, os negros, as mulheres, as LGBT’s, os indígenas e os refugiados, que estão morrendo aos montes, numa média de mil mortes diárias de covid-19. Já ultrapassamos mais de 110 mil mortos e mais de 4 milhões de infectados em números oficiais, sabendo-se que o número é muito maior, devido à subnotificação.

Mas isso não significa automaticamente que a classe trabalhadora será derrotada, porque depende de como ela reagirá à tragédia. Caso seja derrotada, estaremos diante de uma barbárie. Caso reaja, estará aberta a possibilidade da construção de uma nova direção para si. Não para reformar esse sistema, que está falido e precisa ser enterrado,  mas para  construir uma alternativa que abra as condições para se gestar uma sociedade sobre outras bases e salvar a maioria da humanidade.  Neste momento,  a guerra está em curso, temos que intervir e lutar para mudar a correlação de forças e derrotar o inimigo. Os exemplos que vêm do Líbano e das mobilizações contra o racismo nos Estados Unidos, por exemplo, demonstram que a classe não vai aceitar calada e que o resultado final ainda não está definido.

Outro entrave é o desemprego galopante, que hoje abarca metade da classe trabalhadora brasileira, pela primeira vez na história. No entanto, o desemprego não começou agora, ele deu um salto na pandemia como produto da política do presidente Bolsonaro e do Congresso Nacional. A MP 936 foi aprovada pelos parlamentares da ultradireita, centrão e da esquerda. O relator foi Orlando Silva, do PCdoB. Os votos da esquerda foram justificados com o argumento do mal menor. Resta saber: “menor” para quem?

A informalidade agrava a situação. Segundo o Instituto Latino-americano de Estudos Socioeconômicos (ILAESE), 78 milhões de brasileiros não têm emprego formal, constituindo um exército de subempregados que trabalham hoje para comer amanhã. Diante desse quadro, é compreensível que aqueles e aquelas que estão trabalhando se sujeitem às condições de trabalho degradantes e jornadas extenuantes.

O Auxílio Emergencial é também um importante entrave para pôr em curso uma luta contra o governo Bolsonaro, mesmo que haja muita revolta e a maioria o rejeite. Ao todo, 65 milhões de pessoas recebem o auxílio de R$600 e uma parcela menor, recebe R$1.200 reais (as mulheres chefas de família). São cerca de 100 milhões de pessoas no país que  estão sobrevivendo desse auxílio. O R7 Notícias publicou, em 20/07, que 44% dos lares brasileiros receberam o Auxílio Emergencial. O Auxílio Emergencial é muito mais abrangente e com um valor bem acima  do valor pago pelo programa Bolsa Família. Embora seja temporário, o governo Bolsonaro encontra um filão de sustentação do seu governo, tentando adotar a mesma estratégia eleitoralista de governos do PSDB e PT. 

O maior entrave diante desse quadro é a falta de uma direção que impulsione, organize,  incentive e oriente a luta direta da classe trabalhadora, empregada e desempregada, contra os ataques do Governo e do Congresso Nacional. A ausência de direção classista e independente deixa órfãs as várias lutas que a classe trabalhadora, a juventude, as mulheres e os negros e negras têm travado ao redor do mundo e no Brasil. De todos os entraves aqui expostos,  esse é o primeiro que precisamos remover do caminho dos explorados e oprimidos.  

São variadas as formas de lutas que a classe trabalhadora pode adotar, tanto para resistir como para atacar. Nesse momento, necessitamos urgentemente de unidade para a ação da classe trabalhadora, porque é preciso colocar em movimento os milhões, em primeiro lugar,  para enxotar o governo Bolsonaro e Mourão como uma das medidas para assegurar o isolamento social e estancar a carnificina promovida por esse governo, com o aval da burguesia e a conivência da esquerda, que em meio ao genocídio praticado contra negros e indígenas, além da violência policial, asseguram os seus interesses econômicos através do ataque aos direitos e do desemprego em massa. É necessário organizar uma greve geral, parar as fábricas, lojas e o setor de serviços. Essa é uma tarefa de todas as organizações da nossa classe. Os partidos, os sindicatos, os movimentos populares, estudantis, da cidade e do campo devem se incumbir dessas tarefas, inclusive de buscar os que não estão organizados em nada e incentivá-los a se organizarem da maneira que acharem melhor. Nós propomos os  Conselhos Populares como formas de organização e de lutas diretas políticas e econômicas.

Sigamos os exemplos dos operários da Renault, que na greve reverteram as demissões; dos metroviários de São Paulo, que derrotaram, com mobilização e greve, a retirada de direitos que o governador João Doria (PSDB) queria impor; dos entregadores de aplicativos, que descobriram que não são empreendedores como lhes fizeram crer e se descobriram, na prática, como trabalhadores precarizados, que passam fome durante a jornada de trabalho extenuante; dos trabalhadores da saúde, quando fizeram ato nacional por melhores condições de trabalho para salvar as vidas das vítimas do Covid-19; das torcidas organizadas em São Paulo em defesa das liberdades democráticas. 

Mesmo na pandemia as lutas não cessam porque a realidade se impõe. O levante em manifestações multitudinárias contra o racismo nos Estados Unidos, após o assassinato de George Floyd. E pelo mesmo motivo as manifestações se estenderam à França,  Inglaterra, Brasil. Tiveram manifestações no Chile, no Equador, no Líbano, Sérvia e tantos outros países.

Por mais dramática e dura que seja a combinação entre crise econômica, social e sanitária para a classe trabalhadora, ela coloca a disjuntiva: a vida ou o lucro, socialismo ou barbárie, e é justamente nesse contexto de polarização e divisão interburguesa que podem surgir possibilidades de emergir a luta capaz de derrotar a burguesia e as direções reformistas, burocráticas e traidoras, de modo a abrir as condições para a revolução em prol da construção de uma sociedade socialista. 

2) A fratura criada na sociedade brasileira pela escravidão é sistematicamente ocultada pelo estado. Na sua visão, ainda é possível superar essa fratura dentro do atual sistema via políticas reformistas ou é necessária a ruptura dentro do contexto da luta de classes? Quais seriam as formas possíveis de resistência nesse momento?

Já está mais que comprovada a impossibilidade de solução do racismo e da exploração, que é muito mais intensa sobre essa parcela da nossa classe, nos marcos do sistema capitalista. A obtenção de qualquer conquista democrática, que é necessária e muito importante, sempre depois de muita luta, é incompleta, desvirtuada e, na primeira ventania de uma crise, é arrastada para resguardar os interesses capitalistas, como nos ensina Lênin. Estrategicamente, a única maneira de acabar definitivamente o racismo e qualquer forma de opressão é pela via da revolução socialista, porque é preciso acabar com as bases materiais que sustentam o sistema, mas, é necessário de antemão enfrentar todas as ideologias e teorias burguesas e reformistas que têm como objetivo preservar o capitalismo.

Depois de quase quatro séculos de escravidão, os negros saíram das senzalas “sem terra, sem casa e sem trabalho”. De toda a riqueza construída sobre o “cemitério de indígenas e negros” no Brasil, não tiveram nenhuma indenização. Passados 132 anos da abolição, as consequências se expressam nos números do sofrimento que recai cruelmente sobre os negros e negras da classe trabalhadora empobrecida e criminalizada. É importante afirmar que essa realidade existiu na ditadura e em todos os governos pós-ditadura (de Collor a FHC) e manteve-se mesmo depois de 14 anos de governos reformistas do PT.

As lutas por reparações travadas em décadas pelo movimento negro não se realizaram nos governos do PT.  Venderam a ilusão de que uma vez eleito Lula como presidente do Brasil, a titulação das terras quilombolas, o acesso a universidade pública e ter a nossa história contada na historiografia oficial se realizariam. Toda a pauta racial foi reduzida às cotas, que é importante apesar de limitado, e ao PROUNI, que foi um mecanismo de transferência de recursos públicos para os tubarões do ensino das universidades e faculdades particulares. Juntam-se a isso a ideologia e as teorias do empoderamento e empreendedorismo individual. Como se os problemas que nos afligem se resolvessem com esforços, dedicação e talentos individuais.

Como se não bastasse, em nome do combate ao crime, criaram as Unidades de Polícia Pacificadora, UPP’s, instalaram nas favelas do Rio de Janeiro, a Lei Antidrogas (nº 1134/2006), a Lei antiterror (nº 2016/2015), elaborada após as manifestações de 2013. Todas essas leis dos governos Lula/Dilma são responsáveis pelo aumento dos assassinatos e encarceramento em massa, principalmente da juventude e mulheres negras pobres, e pela perseguição dos movimentos sociais, vastamente aplicadas pelos governos de direita e ultradireita que os sucederam.

Sem dúvidas, as políticas afirmativas são muito importantes, porque fomos educados, pelas teorias de embranquecimento, a negar a nossa negritude, sob a ideologia da vida em harmonia entre brancos e negros, sobre um mito de democracia racial. Ou da associação do negro a tudo que é ruim e incapaz, como parte das teorias que justificaram a escravização. 

E mesmo agora, diante de um governo de ultradireita de Bolsonaro, abertamente racista, machista, LGBTfóbico, xenófobo, vinculado as milícias e genocida, partidos como o PT, o PCdoB e o PSOL estão mais preocupadas com as eleições. O centro da preocupação e da conduta dessas direções é a conformação de frentes eleitorais, amplas e de esquerda. Não tem como política e tarefa central construir na luta, a campanha pelo fora Bolsonaro e Mourão, os responsáveis diretos pelas milhares de vidas interrompidas. Com as direções dos partidos e as burocracias sindicais voltadas para seus próprios interesses, deixam a nossa classe explorada e oprimida desarmada diante do inimigo.

Sem nos debruçar sobre o que significou o governo de Barak Obama para os negros naquele país e no mundo, onde o assassinato do George Floyd pela polícia dos EUA e as lutas antirracistas revelam as questões centrais da classe trabalhadora sobre as quais  devemos nos deter, que é a relação entre a opressão e a exploração. Sem entender que essas lutas são combinadas, para que elas ponham em unidade a nossa classe, o combate ao racismo, assim como o machismo e a LGBTfobia não serão efetivos.

Isso significa que não é uma luta dos negros e indígenas contra os brancos, das mulheres contra os homens, das pessoas LGBTT’s contra os héteros, mas uma luta contra o racismo, o machismo, a LGBTfobia e a xenofobia, dentro e fora da nossa classe. Uma luta dos explorados para assegurar a unidade e derrotar a sua classe inimiga, a grande burguesia opressora e exploradora. Por outro lado, não podemos ter a ilusão de que o racismo e qualquer forma de opressão se resolvam por completo no sistema capitalista, esse combate se dá antes, durante e depois da revolução socialista, porque a opressão e a exploração estão entrelaçadas nas relações econômicas e culturais a serviço do lucro capitalista.

3) O século XXI trouxe avanços tecnológicos na área de comunicação como a massificação da internet e das redes sociais, que foram rapidamente apropriados pelo capital como instrumentos de dominação e controle da classe trabalhadora. Nesse cenário, como se aproximar da classe trabalhadora e consequentemente das periferias majoritariamente pretas dos centros urbanos?

A comunicação através das redes sociais é um avanço muito importante e,  se por um lado, serve à classe dominante, por outro, a classe trabalhadora, a juventude e os oprimidos têm utilizado essa ferramenta para fazer denúncias de violências praticadas pelos governos e empresários, bem como expor casos de humilhação,  machismo, racismo, LGBTfobia, xenofobia entre outros. Recentemente, o vídeo do entregador sendo humilhado por um morador de um condomínio de luxo tomou grandes proporções e solidariedade após viralizar nas redes.

Porém, diferente do que propaga a burguesia, as redes estão longe de assegurar a democratização da comunicação. Seja pelo acesso restrito a computadores, tablets, smartphones e à internet, seja pela forma com funciona, cujo alcance se dá em base a impulsionamento, engajamento, compartilhamento e usos de robôs que custam caro.  As empresas usam as redes sociais para a propaganda, grupos de ultradireita para disseminarem mentiras e ideologias racistas, machistas, xenófobas, LGBTfóbica e todo tipo de insulto à classe trabalhadora e aos oprimidos, para propagar fake news e ajudar a avançar na opressão e ataques.

Mas as redes também oferecem um espaço para a luta e podem ser usadas como  ferramentas de mobilização para manifestações, greves e atos, seja num bairro, numa cidade, no país e mesmo atos internacionais, como  por exemplo, as lutas no Egito e em Hong Kong,  em que muitas delas se organizaram apoiadas nas redes sociais.

A pandemia deixou essa necessidade e a importância das novas tecnologias de comunicação evidentes: proporcionou o tele trabalho, as lives, atos, reuniões, entretenimentos, consultas, aulas. Demonstrou também a desigualdade social, quando o governo resolveu retornar às aulas remotas, e o país teve a triste informação que cerca de 50% dos alunos das escolas públicas não tem celular, e quando possuem, não tem acesso a internet. É preciso socializar o acesso à internet, com computadores e celulares de simples manuseio e gratuitos e redes de wifi públicas em todos os cantos do país.

https://veja.abril.com.br/blog/thomas-traumann/o-que-explica-a-recuperacao-de-bolsonaro-nas-pesquisas/

https://www.pstu.org.br/para-defender-as-vidas-do-povo-negro-e-pobre/

https://www.pstu.org.br/o-que-e-ser-antirracista/

https://www.pstu.org.br/programa-de-emergencia-contra-a-pandemia-e-a-crise-economica/

https://www.pstu.org.br/pandemia-e-crise-economica-para-onde-vai-o-mundo/