Procurador da República concede entrevista à APES sobre Fundações de Apoio

Caixa 2 e Laranja: Práticas e vícios que revelam confusão em torno da natureza jurídica das Fundações de Apoio

O Procurador da República Marcelo Borges de Mattos Medina é formado em Direito pela UFJF, Mestre em Direito Público pela UERJ e autor do livro: Constituição e realidade: a influência das transformações sociais na jurisdição constitucional. Marcelo Medina atua como Procurador em Juiz de Fora desde 2012. Confira:

 

APES: Qual a visão da Procuradoria da República em relação às Fundações de Apoio e, especificamente, a Fadepe?
Procurador: O Ministério Público entende que a legislação prevê a existência e autoriza o funcionamento das Fundações de Apoio. O que se exige, é que, nas suas relações com as fundações de apoio, as Instituições Federais de Ensino se baseiem em projetos específicos, que resultem em produtos bem definidos, os quais possam importar melhorias mensuráveis na qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão.  Essas são as diretrizes ressaltadas pela legislação e que devem ser cumpridas. As fundações de apoio têm personalidade jurídica própria, distinta da das instituições apoiadas, e, como quaisquer outras fundações, são veladas pelo Ministério Público Estadual.  Além disso, sujeitam-se, também, à fiscalização do Ministério Público Federal, na tutela do patrimônio público e da probidade administrativa. Apesar da legislação aplicável, a relação das Instituições Federais de Ensino com as Fundações de Apoio vem apresentando distorções há décadas, as quais têm sido apontadas pelos órgãos de fiscalização e controle. O Tribunal de Contas da União, por exemplo, firmou jurisprudência quanto a muitas dessas distorções, fixando diretrizes para o relacionamento entre as Fundações de Apoio e as instituições apoiadas. Esquematicamente, da jurisprudência do TCU e da atuação dos demais órgãos de controle se pode extrair a tipologia das distorções daquele relacionamento, algumas das quais observadas, ao menos até recentemente, na relação entre a FADEPE e a UFJF.  Trata-se, contudo, de distorções disseminadas pelo país. Por isso, não se cuida, nesta sede, de censura a qualquer fato, mas de crítica destinada ao aperfeiçoamento das referidas relações.  É importante salientar que tais distorções revelam a confusão em torno da natureza jurídica das Fundações de Apoio, que não constituem órgãos das instituições apoiadas. Também na UFJF, por vezes, isso é esquecido, como no caso Resolução do Conselho Superior sobre os cursos de especialização, que, em 2011, entendeu por outorgar competências à FADEPE, como se essa Fundação pertencesse à Universidade.
APES: Quais são as principais distorções?
Procurador: A primeira distorção se refere ao fato de as Fundações de Apoio serem utilizadas como pessoas jurídicas interpostas, como “laranjas”, na contratação de bens, obras e serviços. Trata-se da prática de uma Universidade transferir dinheiro para a Fundação respectiva, para a contratação de obras públicas, serviços de manutenção, aquisição de bens etc.. Essa prática foge dos parâmetros que regem as Fundações de Apoio, que devem seguir projetos específicos, com prazos definidos, tendo por objeto atividades que não se confundam com a rotina administrativa da instituição apoiada.  Nessas hipóteses, a Universidade não se beneficia de qualquer expertise da Fundação, mas, simplesmente, toma por empréstimo as suas contas bancárias e a sua estrutura administrativa. Portanto, não se justifica a transferência de recursos públicos para que a Fundação celebre contratos que a própria Universidade poderia, por meios próprios, celebrar. No entanto, essa prática, recorrente, mostra-se conveniente para as Universidades e acaba por ser uma espécie de resposta, de “jeitinho”, em face de exigências de ordem financeira e orçamentária. Mas a consequência é a burla à exigência de contratação por meio de processos licitatórios, mesmo quando a Fundação de Apoio adota sistemas inspirados na lei de licitações. Mesmo presumindo lisura, tais práticas não são compatíveis com os princípios constitucionais da legalidade e da moralidade administrativa, nem com a necessidade de transparência na Administração. Como exemplos desse primeiro tipo de distorção, cito constatação da CGU a respeito da aquisição de equipamentos para laboratório da UFJF por meio da FADEPE, bem como a exploração do Centro de Convivência pela mencionada Fundação, mediante permissão onerosa de uso.
A segunda distorção é a utilização das Fundações de Apoio como intermediárias na contratação de mão de obra. Exemplos reiterados desse tipo de distorção são encontrados nos hospitais universitários, em que funcionários de Fundações de Apoio desempenham atividades próprias dos cargos Técnico-Administrativos em Educação. A justificativa apresentada para esse tipo de prática, muitas vezes, é a ausência de autorização para a realização de concursos públicos. É fato que as atividades dos hospitais universitários são sensíveis e, por isso, há certa tolerância dos órgãos de fiscalização. Na UFJF, a alternativa que vem sendo viabilizada à prática em questão e a adesão à EBSERH, também cercada de polêmicas. Mas, ao menos, evita-se a burla à exigência constitucional de concurso público, que é a consequência desse segundo tipo de distorção, o qual é uma variação do primeiro. Outros exemplos, no âmbito da UFJF: a contratação, por meio da FADEPE, de funcionários para a Farmácia Universitária e para a Editora Universitária.
A terceira distorção é a utilização das Fundações de Apoio como operadoras de contabilidade paralela, de típico “caixa dois” das Universidades Federais.  Essa prática revela-se pela movimentação e manutenção de recursos públicos no ambiente de contabilidade privada das Fundações de Apoio, em separado da contabilidade pública aplicável aos recursos que ingressam na conta única do Tesouro Nacional, com os seus mecanismos de transparência e controle. As Universidades, nesse contexto, na prática, passam a contar com dois caixas distintos, um deles operado pelas Fundações de Apoio. No âmbito da UFJF, a formação e a alimentação do caixa da FADEPE se dá por diferentes formas. Uma delas é a captação de recursos junto a parceiros externos, o que é lícito. Mas essas verbas devem ser mantidas na conta específica vinculada a cada convênio. E as sobras, pelo princípio da unidade de tesouraria, devem ser revertidas em proveito da conta única do Tesouro Nacional. Só que nem sempre isso acontece, ou nem sempre isso acontecia, no que diz respeito à integralidade dos valores. As Fundações de Apoio podem se ressarcir das despesas administrativas que suportam em cada convênio. É o caso das despesas com água, luz, telefone, aluguel etc.. Mas não podem auferir remuneração, ainda que sob a forma de taxa de administração ou similar. As despesas administrativas devem ser demonstradas, comprovadas. Ocorre que, na UFJF, adotou-se a prática de se reservar para a FADEPE percentual linear fixo, de 15%, na maioria dos convênios celebrados entre as duas instituições, inclusive para a oferta de cursos de especialização. E o excedente, após o pagamento das despesas administrativas reais, permanecia com a FADEPE, como se fossem recursos próprios, de natureza privada. Não são. Os recursos captados pelas Fundações de Apoio no âmbito de convênios com as Universidades, ou mediante a exploração do patrimônio, ainda que imaterial, das Universidades, são recursos públicos e deveriam ser mantidos no ambiente da contabilidade pública. No caso da UFJF, outro exemplo de alimentação do caixa fundacional com recursos públicos era o do recolhimento da chamada taxa de registro de diploma diretamente em conta da FADEPE, sem que nem mesmo houvesse convênio que o justificasse. Os recursos públicos mantidos, como se fossem particulares, na contabilidade paralela das Fundações de Apoio é muitas vezes utilizado para contratações e aquisições do interesse das Universidades. O problema é que as contratações assim realizadas não são precedidas licitação, não há prestação de contas quanto à correção e a economicidade dos gastos. Não há controle nem transparência, o que, por si só, evidencia o risco da prática em questão, ainda que não se presuma má-fé da parte de quem quer que seja.

APES: Como a Procuradoria atua em relação às Fundações de Apoio? 
Procurador: O MPF atua em duas linhas.  Uma é a preventiva, que visa a superar as distorções comentadas, a mudar a cultura de que as Fundações de Apoio poderiam funcionar como órgãos das Universidades. A outra tem caráter repressivo, com a apuração de responsabilidades. O Seminário “A relação entre as Fundações de Apoio e as instituições apoiadas”, realizado pelo Ministério Público de Minas Gerais e a FADEPE, em outubro deste ano, talvez seja marco do início de mudança na cultura universitária em relação à FADEPE, com o abandono progressivo dessas “práticas deturpadas” ou “viciadas”. Outras iniciativas adotadas recentemente pela gestão da UFJF também apontam para essa mudança cultural, embora nem sempre sejam bem acolhidas. É clara a insatisfação ou a incompreensão quanto à necessidade de mudanças de práticas muito difundidas no relacionamento com as fundações de apoio que, nem por isso, são legais. Sobre a segunda linha de atuação, a da apuração de responsabilidades, pode-se dizer que temos investigações em andamento, ainda não concluídas. É preciso apurar eventual dolo, eventual má-fé, ou, conforme o caso, culpa, para que se configure a responsabilidade pessoal dos investigados.